
Sérgio Nazar David
Lívia procura um amor, busca as emoções fortes do encontro com um homem. Suely (assim mesmo, com “y”) entrega sanduíches. Vê a casa das pessoas mas nunca pode entrar. Pedro sente algo estranho, que o inquieta e o leva a não querer sair de casa. Sua mulher, Marília, vai ao cinema aos domingos, vê filmes que fará questão de esquecer. É suficientemente inteligente para explicar a própria covardia diante do desejo e da vida. Fred trabalha num escritório na Praia de Botafogo, com vista para o mar, que tem quarenta e duas câmeras espalhadas. Ele quebra trinta e duas. Vai ser mandado embora, supõe, porque não está feliz, porque nem um curso de interpretação para TV consegue fazê-lo capaz de representar a comédia vil do capitalismo em que cada um tem o seu preço para se calar. Fred chuta o próprio casaco, joga a gravata no chão: “sabe para que serve a gravata?”, pergunta a Pedro, seu amigo. E completa: “para que a gente se lembre que está com a corda no pescoço!”
Este é o núcleo mais fundamental da peça Os Estonianos, de Julia Spadaccini, direção de Jorge Caetano: com Jorge Caetano, Ana Kutner, Thaís Tedesco, Pedro Henrique Monteiro e Ana Baird. O título evoca uma amiga que Fred adicionou no Orkut, estoniana, que envia fotos (da Estônia). Fred diz a Pedro: “Os estonianos são vermelhinhos, são fotos com todos em volta de uma mesa, rindo, muito felizes...” Enquanto Fred acha que alguém no mundo é totalmente feliz (e por isso se prepara para viajar para a Estônia), Marília acha que ninguém é feliz e que a única saída é ver o que falta ao corpo para medicá-lo. Marília se diz “psicanalista”, mas a palavra para ela tem pouco valor. Prova disso é que trabalha por silenciá-la. Nas sessões de Lívia, termina quase invariavelmente por um “temos que dobrar a dose”, “temos que mudar a medicação”.
Sigmund Freud se pergunta em Mal-estar na civilização: “o que os homens pedem da vida?” E ele mesmo responde: “esforçam-se por obter felicidade, querem ser felizes e assim permanecer”. Para tal “visam a uma ausência de sofrimento e de desprazer”. E também “à experiência de intensos sentimentos de prazer”. E avança um pouco mais, mostrando que uma certa parcela de mal-estar nunca pode ser abolida, por melhor que seja o mundo, porque estrutura a subjetividade humana: o mal-estar é estrutural.
Julia Spadaccini dá belíssima expressão a este fundamento da psicanálise, quando põe o saber do lado da analisanda, Lívia, que ao final da peça diz a Marília (sua analista) que não quer mais tomar remédio, que não quer mais ser “outra pessoa”, que quer ficar com a sua tristeza. É a partir deste ponto que pretende tecer a sua história de vida. Marília então se cala pela primeira vez. Lívia pergunta por que ela não diz nada. E, surpreendentemente, a analista responde: “porque você tem razão”.
Em Os estonianos, todos tentam se adaptar. Suely gostaria de ser vendedora de produtos de beleza para assim poder entrar nas casas que visita. Mas segue entregando seus sanduíches... Fred é gay e vive, entre os homens heterossexuais, rindo de piadas idiotas para fazer de conta que pertence ao grupinho... Marília chora com a cara na revista, mas não perde a pose de analista sabichona de filme americano. Lívia liga para uma agência de prostituição, cadastra-se, porque quer encontrar um homem “patético”. Talvez este tenha condições de amá-la. Acaba caindo num quarto de hotel com Pedro. Dança ao som de “Trust in me” com uma peruca loira, ela própria tão patética.
É nesta cena que vemos a comédia e a tragédia de vida contemporânea. Lívia tropeça num acessório, pede para começar de novo o número musical. Pedro concorda. Lá vem ela novamente se enroscando como uma cobra. O público ri, vai rindo daquilo tudo, porque sabe que Suelen (a prostituta) é na verdade Lívia tentando ser o que não é... Por trás da coreografia de filme B está o drama de tantos homens e mulheres, hoje, que têm liberdade, mas nem por isso são mais felizes. A cena lembra os filmes de Frederico Fellini. O revólver é de brinquedo, está apontado. Aperta-se o gatilho. Para nossa surpresa, o tiro é de verdade.
Interrompida a comédia, fica o público com o riso preso na garganta. Todo grande teatro é assim: faz pensar no que somos e no que queremos ser. O resto é entretenimento barato e fútil, ou experimentalismo vazio. Dito de outro modo: perfumaria ou sofisma.
A Companhia Casa de Jorge traz uma contribuição nova ao teatro brasileiro. Quero destacar que há aqui verdade, maturidade artística, uma posição clara face ao mundo, à existência, ao próprio ato criador. Julia Spadaccini tem um modo todo seu de escrever. Jorge Caetano compreendeu em profundidade o universo da autora, e ainda acrescentou (com requinte e sem histrionismo) na encenação o que no texto está em potencial. O estranho mundo de Julia é de inquietudes interiores, de pequenos dramas vividos na esfera íntima. Terminam sempre “entre quatro paredes”, para agora evocar Sartre, um dos grandes questionadores deste chão em que pisamos e que se foi construindo sob bases tão falsas. Terminam sempre em casa: a casa de Jorge.